Há tempos as pesquisas de opinião registram que a credibilidade do Judiciário junto à população, em especial a do Supremo Tribunal Federal (STF), diminuiu na exata proporção em que cresce a percepção de seu protagonismo político. Há pelo menos dez anos está em curso um círculo vicioso e antirrepublicano que não dá sinais de arrefecer: a judicialização da política retroalimentada pela politização da Justiça.
Há razões estruturais para isso. A Constituição de 1988 é um documento excessivamente abrangente e prolixo que, como já notou o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, “constitucionalizou inúmeras matérias que, em outras partes do mundo, são deixadas para a política”.
Mas há razões conjunturais. Os freios e contrapesos estão estiolados. Sob chefes do Executivo fragilizados, o Congresso assumiu para si prerrogativas exorbitantes, mormente sobre o Orçamento, gestando uma espécie de parlamentarismo bastardo, em que os caciques têm muito poder e pouca responsabilidade. Com o colapso do presidencialismo de coalizão, ante um Legislativo indócil, o Executivo tem buscado no Judiciário um fiador da governabilidade.
Chamada para a dança política, a Suprema Corte não se fez de rogada, e tomou gosto em atuar ora como poder moderador da República, ora como poder tensionador, seja ditando políticas públicas às instâncias executivas, seja legislando a pretexto da “omissão” das Casas Legislativas. Na Lava Jato, instâncias inferiores do Judiciário se auto-outorgaram uma espécie de “competência universal de combate à corrupção”. Hoje, é o STF quem assume para si uma “competência universal de defesa da democracia”.
Os próprios representantes eleitos contribuem para a politização da Justiça. Partidos nanicos, sobretudo de esquerda, abusam do tapetão judiciário para reverter ou impor nas cortes causas que perderam no voto. “Nós temos culpa de tanta judicialização”, confessou ninguém menos que o presidente Lula da Silva, no início de seu mandato, num raro surto de sinceridade. “A gente perde uma coisa no Congresso Nacional e, ao invés de a gente aceitar a regra do jogo democrático de que a maioria vence e a minoria cumpre aquilo que foi aprovado, a gente recorre a uma outra instância para ver se a gente consegue ganhar.”
Se fosse o estadista que finge ser, Lula teria buscado sanear esse estado de coisas, desestimulando seus partidários de recorrerem ao tapetão sempre que perdem no voto e fazendo indicações técnicas para a Justiça. Ao contrário, Lula mandou às favas o pudor e o notório saber jurídico e indicou para o STF seu amigo e advogado Cristiano Zanin e o também amigo e correligionário Flávio Dino, realizando um “sonho antigo” de instalar nele alguém com “cabeça política”.
A colonização da Justiça não para por aí. Como mostrou reportagem do Estadão, Lula tem se dedicado com afinco a forrar não só o Executivo, mas tribunais superiores e regionais, além de órgãos e autarquias com leais servidores. As nomeações ligadas ao grupo de advogados militantes de esquerda Prerrogativas chegam às dezenas.
Respeitadas as prioridades técnicas, seria natural indicar figuras que compartilhem de uma visão progressista sobre a coisa pública. Mas não se trata apenas de alinhamento ideológico. Se fosse, a indicação de Joaquim Barbosa ao STF, em 2003, não seria considerada “desastrosa”, como disse um interlocutor próximo ao presidente à reportagem. Do que se sabe de suas manifestações públicas, Barbosa comunga dos ideais progressistas, mas seu pecado foi ter aplicado a lei no julgamento do mensalão petista.
“Estou convencido que tentar mexer na Suprema Corte para colocar amigo, para colocar companheiro, para colocar partidário é um atraso”, disse o então candidato Lula na disputa presidencial de 2022. Já o presidente Lula parece convencido de que se trata de um avanço. “A gente ganhou mais malícia”, disse o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Prerrogativas e amigo de Lula. Quando a malícia é critério para indicações na Justiça, o corolário, por necessidade lógica, é um só: más escolhas e más consequências para a legitimidade do Judiciário.
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