Enquanto é usada por líderes políticos, pessoas comuns e até como ferramenta de guerra, a rede social desafia os governos, que querem acesso aos dados. Afinal, quem ganha e quem perde com a prisão do executivo e quais as consequências que esta ação pode gerar?
Nascido na Rússia, o criador do Telegram, Pavel Durov, foi naturalizado francês em 2021, tendo passado por um processo raro e excepcional, que o concedeu a nacionalidade por ser considerado um "estrangeiro emérito", alguém que trabalha, de alguma forma, em prol da França. No entanto, desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, a ferramenta, que tem 900 milhões de utilizadores ativos, tornou-se a plataforma preferida dos influenciadores russos pró-guerra para justificar a operação e para espalhar fake news.
Mas não faz apenas dois anos que a rede se vê em meio a polêmicas. Ao montar uma estrutura técnica e jurídica que a permite de não estar em conformidade em nome da vida privada e da liberdade de expressão, a plataforma vem gerando um paradoxo. Ao mesmo tempo em que é usada por líderes políticos, é também alvo de governos, que querem acesso aos dados criptografados.
Na Ucrânia, até o presidente Volodymyr Zelensky utiliza o aplicativo e faz publicações diárias. Porém, especialistas apontam que, na ausência de ferramentas modernas, as tropas russas também usaram mensagens criptografadas para operações no campo de batalha, desde a transferência de inteligência até a correção de ataques de artilharia, incluindo a orientação de mísseis Iskander.
Agora, Moscou teme que Durov entregue a chave para descriptografar as mensagens aos franceses.
Os influenciadores russos, alguns dos quais têm dezenas de milhares de seguidores, “estão aterrorizados”, garante Ivan Filippov, especialista em propaganda de Moscou, observando que o acesso da inteligência ocidental às mensagens seria “um desastre absoluto” para eles.
Na terça-feira, o porta-voz da presidência russa, Dmitri Peskov, falou em “acusações gravíssimas” contra o franco-russo, evocando uma possível “tentativa de intimidação”. O bilionário, de 39 anos, é um libertário declarado, defensor da confidencialidade da Internet, mas controverso por recusar qualquer moderação no serviço de mensagens que ele cofundou. Moscou também tentou bloqueá-lo em 2018, mas desistiu.
Para o influenciador Andrei Medvedev, o Telegram tornou-se agora o “principal mensageiro” da invasão russa, uma “alternativa às comunicações militares confidenciais”.
“Preso no passado”
As unidades russas operam sistemas de comando e controle, “mas não são eficazes no front”, disse Mykhailo Samus, diretor da New Geopolitics Research Network, um think tank com sede em Kiev. “O Exército russo está preso ao passado.”
A Ucrânia, acrescenta, depende do sistema Delta desenvolvido em cooperação com a Otan e alvo de elogios dos aliados de Kiev.
Embora não se espere que a custódia de Durov, prorrogada até quarta-feira (28), tenha um impacto direto ou imediato no conflito, ela pode forçar Moscou a encontrar uma alternativa ao Telegram.
Andrei Medvedev diz que é “difícil prever quanto tempo o Telegram permanecerá como o conhecemos, ou se tais mensagens continuarão a existir”.
De qualquer forma, o caso vai muito além do campo de batalha. A chefe da televisão pública RT, Margarita Simonyan, pediu aos russos que excluíssem suas mensagens confidenciais. Os franceses prenderam o empresário para obter as chaves de criptografia, garante. “E ele vai dar a eles.”
Cumplicidade no crime organizado
A justiça francesa critica Pavel Durov pela sua inação contra o uso criminoso das mensagens na rede social. Estas incluem, entre outras coisas, a recusa de comunicação das informações necessárias para as interceptações autorizadas por lei, a cumplicidade em delitos e crimes organizados na plataforma (drogas, pornografia infantil, fraude e lavagem de dinheiro de gangues organizadas) e a prestação de serviços de criptologia sem declaração de conformidade. A sua detenção divide a oposição russa, parte da qual acusa a França de atacar a liberdade de expressão.
Mas o jornalista búlgaro Christo Grozev, que investigou a inteligência russa, afirma, por sua vez, que os serviços de segurança interna (FSB) e a inteligência militar (GRU) usaram o Telegram para preparar “atos terroristas” e recrutar mercenários.
“A França não tem motivos para tratá-lo de forma diferente de qualquer pessoa que administre uma plataforma de venda de drogas ou pornografia infantil”, acredita. “Isso não tem nada a ver com liberdade de expressão.”
O Fórum Rússia Livre, do oponente e ex-campeão de xadrez Garry Kasparov, observa que Durov, voluntariamente ou não, deixou o Telegram se tornar uma "arma de guerra".
“Não importa como termine a saga francesa Durov, esperamos que o Telegram deixe de ser uma ferramenta para a guerra de Putin”, disse.
Alvo em outros países
O Telegram também representa um problema para outros países. O aplicativo está sendo investigado na Índia e corre o risco de ser bloqueado por lá. No Brasil, diversos grupos na rede social, bem como contas de políticos, foram bloqueados por conta do inquérito das fake news, aberto pelo Superior Tribunal Federal.
O jornalista Olivier Tesquet, da unidade de investigações da revista francesa Télérama e autor de “Na trilha, investigação sobre os novos territórios de vigilância” (não publicado no Brasil), disse à RFI que os países podem, inclusive, atuar de forma conjunta contra a rede.
“Há mecanismos jurídicos que permitem o que chamamos de Mutual Legal Assistance. Um país pode enviar a outro uma demanda de assistência jurídica. Mas o problema com o Telegram é o acesso aos dados, a partir de um momento em que um servidor é em determinado país e outros em outros. E cada vez - e isso o Telegram explica no seu próprio site - é preciso fazer uma demanda específica a cada um desses países. As muitas camadas jurídicas que foram instituídas fazem do processo extremamente difícil”, disse.
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