O presidente Lula arrancou uma surpreendente concessão dos militares. O ministro da Defesa, José Múcio, disse a jornalistas nesta quarta-feira (20) que as Forças Armadas vão contribuir com o corte de gastos – e “exatamente como o ministro [Fernando] Haddad pediu”.
Os termos dessa contribuição não foram divulgados oficialmente, uma vez que o pacote de contenção de despesas continua no forno. Mas sabe-se que ela envolve o sistema de proteção social dos militares. Ou seja, questões relativas a veteranos e pensionistas.
O titular da Defesa afirmou que as Forças Armadas estão “dando o exemplo, um sacrifício para resolver o problema do país”. Ele deu a declaração logo após comentar as prisões de quatro militares suspeitos de envolvimento em uma trama para assassinar Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do STF (sobre esse caso, Múcio afirmou que os membros do Exército agiram por contra própria e defendeu que, se culpados, sejam punidos os que “mancham o nome das Forças Armadas”).
Em se tratando de governo Lula, corte de gastos e benefícios de militares, recomenda-se não esperar grande coisa. Sempre há tempo e espaço para atrasos, reviravoltas, asteriscos e letras miúdas. E o impacto fiscal das alterações nas Forças Armadas tende a ser pequeno; o efeito buscado pelo governo é mais simbólico, de indicar que o esperado ajuste fiscal não afetará apenas os mais pobres.
De todo modo, a declarada adesão da Defesa ao pacote preparado por Haddad surpreende pela rapidez e pela aparente falta de resistência da caserna.
No governo de Jair Bolsonaro, foi a muito custo que as Forças Armadas concordaram em mudar regras de seu sistema de proteção social – e só o fizeram ao receber em troca a ampliação de outros benefícios. O então presidente, ele próprio militar da reserva, fez o possível para proteger a corporação. Em compensação, a reforma da Previdência dos servidores civis e dos trabalhadores da iniciativa privada foi bem mais dura.
Segundo o que foi ventilado de forma extraoficial, as novidades que Múcio negociou com Lula, Haddad e os comandantes das três Forças envolvem:
fixação de idade mínima de 55 anos para a passagem dos militares à reserva;
contribuição de 3,5% da remuneração para o fundo de saúde; e
extinção da “morte ficta”, situação em que familiares recebem pensão de um militar expulso por crime ou infração grave, como se ele tivesse morrido. O benefício será substituído por uma espécie de auxílio-reclusão.
Hoje não existe idade mínima para que os militares deixem a ativa e passem à reserva. Eles só têm de cumprir tempo mínimo de serviço, que foi elevado de 30 para 35 anos na reforma de 2019.
Na mesma reforma, o desconto na remuneração de ativos e inativos – a título de contribuição para pensão – foi elevado de 7,5% de 10,5%. Pensionistas passaram a sofrer desconto no benefício, também de 10,5%. Quem ingressou até 2000 manteve o direito de acrescentar contribuição de 1,5% para garantir benefício vitalício às filhas.
Apesar do aumento nos descontos e no tempo de serviço, a reforma de 2019 manteve aos veteranos e pensionistas das Forças Armadas o direito a benefício integral – equivalente ao último soldo recebido na ativa – e à paridade, ou seja, reajuste idêntico ao recebido pelo pessoal em atividade.
Paridade e integralidade ainda existem para os servidores civis mais antigos, mas já não se aplicam aos contratados após 2003. Os trabalhadores celetistas, segurados do INSS, não têm esses direitos.
A reforma da Previdência também implantou idades mínimas de 62 anos para mulheres e 65 para homens, tanto no serviço público quanto no INSS, bem acima do nível que possivelmente será criado para militares. E as contribuições individuais à Previdência, também reajustadas em 2019, podem chegar a 14% na iniciativa privada e a 16,79% nas maiores remunerações do setor público.
As Forças Armadas, além disso, receberam contrapartidas ao aceitar a reforma de cinco anos atrás. Um exemplo: a ajuda de custo, paga em parcela única quando o militar passa para a reserva, foi duplicada. Com isso, os veteranos passaram a receber oito vezes o soldo do maior posto de seu círculo hierárquico.
O que os militares dizem sobre seu sistema de proteção social
Os militares têm na ponta da língua as respostas para quem vê privilégios em seu sistema de proteção social:
militar não se aposenta: está permanentemente à disposição do país e pode ser convocado a qualquer momento;
não tem FGTS;
não tem direito a greve, sindicalização e filiação a partido político;
não recebe hora extra, adicional noturno ou de periculosidade;
é obrigado a mudar de cidade sempre que ordenado.
Os cadernos de avaliação atuarial que as Forças Armadas preparam todos os anos costumam trazer um arrazoado para explicar as discrepâncias em relação à Previdência dos civis.
O documento anexado ao Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2025, por exemplo, diz que o sistema de proteção social dos militares “viabiliza a prontidão das Forças Armadas para o cumprimento de sua missão constitucional”. O que significa atrair e reter talentos, manter efetivos com vigor físico e mental “compatível com as exigências da atividade bélica” e compensar as “peculiaridades específicas (sacrifícios) da carreira militar”.
“Por conta dessas funções, quase a totalidade dos países compreendem que a proteção social militar deve ser distinta da previdência social”, argumenta o texto.
Os rombos da Previdência: INSS, servidores e militares
Em outros países também é comum que o Tesouro cubra grande parte ou quase a totalidade das despesas com militares veteranos e pensionistas. As regras de acesso e os benefícios variam, sendo em alguns casos mais generosas no Brasil e em outros, menos.
Ainda assim, os valores envolvidos chamam atenção. Segundo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), a diferença entre contribuições e benefícios do sistema militar resultou em déficit de quase R$ 50 bilhões no ano passado. É pouco menos que o do RPPS, o regime próprio dos servidores civis, que tem mais que o dobro de beneficiários e registrou saldo negativo de R$ 55 bilhões. No INSS, o rombo passou de R$ 315 bilhões, mas ele atende a público bem maior.
O ministro do TCU Walton Alencar, ao apresentar voto em separado no julgamento das contas do governo de 2023, apontou que o déficit per capita foi de R$ 9,4 mil no INSS, R$ 69 mil no RPPS e R$ 159 mil nas Forças Armadas. “O sistema de proteção dos militares é o que impõe maior custo à sociedade, por beneficiário e, por isso, deve ser objeto de atenção, estudo e debate”, disse Alencar.
Conforme números anexados ao PLDO 2025, hoje há pouco mais de 313 mil militares veteranos e pensionistas. Na Previdência dos servidores, são 796 mil beneficiários, somando Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público. O INSS, por sua vez, paga benefícios a 34,2 milhões de aposentados e pensionistas.
Considerando os resultados estimados para este ano em diferentes relatórios oficiais, o INSS deve ter déficit próximo de R$ 8 mil por aposentado ou pensionista. No regime dos servidores civis, o rombo pode chegar a R$ 70 mil por beneficiário. E, no sistema militar, a R$ 161 mil.
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