Quando militares radicais tentaram reunir apoio nas Forças Armadas para viabilizar um “golpe de Estado” em 2022, esbarraram na resistência de integrantes do Alto-Comando do Exército. Esses generais não cederam à pressão feita por tenentes, coronéis e, até mesmo, por colegas de patente que, agora, estão atrás das grades. O general Valério Stumpf Trindade, 64 anos, foi peça fundamental para enterrar o flerte na caserna com a ruptura democrática. Ele contou com exclusividade à coluna detalhes daqueles dois meses que sucederam a eleição presidencial.
“Tudo o que fiz foi com o conhecimento do Alto-Comando do Exército, alinhado com o [então comandante] general Freire Gomes. Existe uma lealdade muito forte no Alto-Comando”, iniciou. Naquela época, Stumpf era chefe do Estado-Maior do Exército e um dos mais antigos generais da ativa.
Atacado por militares e pela parte da militância bolsonarista que almejava uma intervenção federal, foi torpedeado nas redes sociais. As ameaças eram acompanhadas de fotos de Stumpf e familiares. A filha do general chegou a ouvir que o pai era um “traidor da Pátria”. Antes da posse de Lula, as publicações tinham o objetivo de pressioná-lo a aderir ao suposto plano. Depois, culpá-lo por permitir a transição de poder.
Stumpf ficou surpreso quando soube, ao ler a coluna, que militares chegaram, ainda, a lhe atribuir a pecha de “informante” de Alexandre de Moraes.
O general rebate: “Por ser chefe do Estado-Maior à época, eu tinha contato com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), então presidido pelo ministro [Alexandre de Moraes]. Estávamos discutindo métodos para reforçar a segurança e a transparência das urnas eletrônicas”.
“Defendi a democracia em tempos complexos”
Alinhado com o Alto-Comando, Stumpf apresentou ao TSE uma proposta de fiscalização das urnas eletrônicas que veio a ser aprovada pela Corte por meio da Portaria 921, que instituiu o projeto-piloto com biometria. O general detalha: “O que nós solicitamos ao TSE era que ampliasse a segurança das urnas por meio de algumas práticas, como o teste de integridade com biometria. E essas medidas, de fato, foram implementadas. Foi muito positivo para reforçar a segurança das urnas. O foco sempre foi preservar a democracia, fortalecendo a credibilidade das urnas eletrônicas”.
Junto do atual comandante do Exército, Tomás Ribeiro Paiva, e com o também general Richard Nunes, Stumpf foi um dos militares mais criticados por não ter se dobrado à aventura do que dizem ser plano de golpe. Termos ditos internamente por ele, como “estabilidade institucional” e “impossibilidade de ruptura democrática”, ganharam contornos condenatórios quando vazados para grupos de militares e civis radicalizados.
“Vergonha eterna desses integrantes do ACE [Alto-Comando do Exército]”, escreveu um militar a outro colega de farda em mensagem interceptada pela Polícia Federal. “Vamos deixar esse general melancia famoso”, dizia a postagem de um civil com a foto de Stumpf em uma rede social.
Atualmente na reserva do Exército, o general Valério Stumpf Trindade diz seguir com a consciência tranquila: “Fui vítima de ataques por cumprir a minha obrigação. Defendi a democracia em tempos complexos. Tenho orgulho de ter agido de forma leal ao comandante do Exército e ao Exército Brasileiro”.
Múltiplos “ataques”
Considerado um dos generais responsáveis por conter a articulação do alegado golpe de Estado nas Forças Armadas, o ex-comandante militar do Sul Valério Stumpf Trindade se tornou alvo de colegas de farda no Exército, incluindo um auxiliar que trabalhava no mesmo comando regional. De acordo com a Polícia Federal, o militar sofreu uma campanha de ataques nas redes.
O nome do general Stumpf, então comandante militar do Sul, foi citado em diálogos entre o coronel Bernardo Romão Corrêa Netto, assistente do Comando Militar do Sul, e o coronel de infantaria Fabrício Moreira de Bastos, que na ocasião trabalhava no Centro de Inteligência do Exército.
De acordo com a Polícia Federal, a conversa levou a uma campanha de “ataques” contra quem se opôs à articulação do suposto golpe. Romão foi preso pela PF em fevereiro deste ano. Conseguiu liberdade provisória no mês seguinte. Bastos foi indiciado em novembro.
O diálogo entre os dois ocorreu no dia 15/11 de 2022, através do WhatsApp, quinze dias após a divulgação do resultado das eleições no segundo turno. Corrêa Netto enviou imagens de cinco fotografias com nomes de generais da ativa do Exército Brasileiro que se posicionaram contra uma ruptura democrática. Em seguida, escreveu “quem dera fossem só esses”.
Stumpf era o terceiro da lista, que ainda contou com os seguintes generais: Richard Nunes [então comandante militar do Nordeste, atual chefe do Estado-Maior do Exército]; Tomás Ribeiro Paiva [então comandante militar do Sul, atual comandante das Forças Armadas]; André Luís Novaes Miranda [à frente do Comando Militar do Leste]; e Guido Amin Naves [então chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia da Força Terrestre, atual comandante militar do Sudeste].
“Os 5 c@nalh@s”
O relatório da PF afirmou: “A partir desse momento, o modus operandi da milícia digital é empregado pela organização criminosa para pressionar, atacar e expor os generais contrários ao golpe de Estado. No dia seguinte, pesquisa realizada na plataforma X (antigo Twitter) revelou que pelo menos um perfil publicou as fotos dos generais trocadas entre Corrêa Netto e Bastos”.
O post dizia: “Dos dezenoves generais, estes cinco c@nalh@s não aceitam a proposta do povo. Querem que Lularapio assuma (…). Repasse para ficarem famosos. Todos melancias, verdes por fora, vermelhos por dentro”.
Em 23/11, Bastos e Corrêa Netto continuam trocando mensagens pelo WhatsApp. O primeiro envia uma notícia sobre a decisão do ministro Alexandre de Moraes para aplicar multa de R$ 22 milhões ao Partido Liberal (PL).
Ele escreve: “Porr@, o AM está humilhando agora”. O assistente do Comando Militar do Sul escreveu: “Thomaz, Richard e Stumpf tinham que ser exonerados, presos, sei lá, qualquer merda, antes do GFG [General Freire Gomes] passar o comando EB [Exército Brasileiro]”.
O parecer da PF embasou o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e outras 36 pessoas pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa. De acordo com a investigação, a articulação para um golpe começou antes mesmo do fim da eleição de 2022.
Entre o primeiro e o segundo turno, o coronel de infantaria Fabrício Moreira de Bastos manteve diálogos com o coronel Bernardo Romão Corrêa Netto. O primeiro trabalhava no Centro de Inteligência do Exército, enquanto o segundo era assistente do comandante militar do Sul. Bastos cobrava Netto sobre uma eventual intervenção.
A Polícia Federal também aponta que o general Stumpf foi alvo de ataques de comunicadores e influenciadores radicais.
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