“Estou calmo, mas também muito decepcionado e muito triste com meu país. É a primeira condenação por crime de pensamento na história britânica”. Foi assim que Adam Smith-Connor comentou ao telefone a sentença pela qual a juíza distrital do tribunal de Poole (Inglaterra), Orla Austin, o considerou culpado, ontem (16), por oração silenciosa. A juíza também o condenou a pagar 9 mil libras esterlinas [equivalente a R$ 66.384,87 na cotação atual] em custas judiciais e lhe deu dois anos de liberdade condicional, o que significa que ele só será condenado se cometer outros delitos nos próximos dois anos.
Smith-Connor, ex-veterano do exército e pai de dois filhos, violou uma Ordem de Proteção do Espaço Público (PSPO) por rezar sozinho, de acordo com a decisão de 16 de outubro. A juíza escreveu que Smith-Connor falhou, “sem desculpa razoável, em cumprir uma exigência da PSPO, especificamente por não ter deixado a área exigida quando solicitado por um funcionário autorizado”. No tribunal, os advogados de defesa de Smith-Connor não convenceram a juíza de que os pensamentos, crenças e opiniões sobre oração não constituem uma ofensa, especialmente porque ele estava pacífica e tranquilamente em uma via pública e, meio escondido por uma árvore, estava de costas para a construção.
A “zona de proteção” em torno da clínica British Pregnancy Advisory Service em Ophir Road, Bournemouth, foi introduzida em outubro de 2022. Ela funciona das 7h às 19h, de segunda a sexta-feira, e proíbe atividades como protestos, assédio, aconselhamento e orações, de acordo com os artigos 4a e 4g da PSPO. O veredito contra Adam baseia-se em uma interpretação abrangente do Artigo 4a, que proíbe: “Protestar, ou seja, envolver-se em um ato de aprovação/desaprovação ou uma tentativa de aprovação/desaprovação, em relação a assuntos relacionados a serviços de aborto, por qualquer meio. Isso inclui, mas não se limita a, meios gráficos, verbais ou escritos, oração ou aconselhamento.”
Para a juíza, a oração silenciosa atrás de uma árvore se enquadra nessa disposição legal, mas, compreensivelmente, Smith-Connor continua a manter sua inocência. Ele alega que nenhuma das atividades descritas na lei descreve suas ações em 24 de novembro de 2022, pelas quais foi condenado. “Hoje é um dia sombrio e perigoso para nossa nação”, disse Smith-Connor. “O governo decretou a capacidade de entrar na mente das pessoas e investigar seus pensamentos. Espero que meu veredito de culpado desperte as pessoas para o que está acontecendo no Reino Unido.”
O governo decretou a capacidade de entrar na mente das pessoas e investigar seus pensamentos. Espero que meu veredito de culpado desperte as pessoas para o que está acontecendo no Reino Unido.
A juíza destacou as provas apresentadas ao tribunal contra Smith-Connor, incluindo e-mails que ele havia escrito para a prefeitura local declarando seu plano de orar por seu filho Jacob, que morreu em um aborto há 22 anos, e por aqueles que sofriam de aborto perto da clínica British Pregnancy Advisory Service (BPAS) em Bournemouth; que ele estava conscientemente orando dentro de uma zona de proteção; que ele estava com a cabeça baixa e as mãos entrelaçadas em oração.
A juíza Austin então escreveu em sua decisão: “Considero que o réu poderia ter sido visto por aqueles que estavam na área, que ele estava orando e que sua conduta teria sido perceptível para um observador”. Esses “atos de desaprovação relacionados às atividades da clínica” violaram a zona de segurança. As ações de Smith-Connor, em sua opinião, foram “deliberadas”.
Após o veredito, Jeremiah Igunnubole, consultor jurídico da ADF (Alliance Defendig Freedom) UK, que assumiu a defesa de Smith-Connor, chamou a decisão de “avanço jurídico de proporções imensas”. “Um homem foi condenado hoje por causa do conteúdo de seus pensamentos — suas orações a Deus — nas ruas públicas da Inglaterra”, disse Igunnubole. “Certamente não conseguiremos ir mais abaixo em nosso abandono das liberdades fundamentais de expressão e pensamento.”
“Se pensar se torna um crime, então entramos no reino da polícia do pensamento e da discriminação contra aqueles que têm crenças religiosas, e isso deve preocupar todas as pessoas de boa vontade, independentemente de sua fé ou do lado do debate sobre o aborto em que se encontram”, disse Isabel Vaughan-Spruce, diretora da Marcha pela Vida do Reino Unido. Em 2023, ela foi considerada inocente de acusações semelhantes pelo Tribunal de Magistrados de Birmingham e recentemente recebeu uma indenização depois que policiais a prenderam por orar perto de uma clínica de aborto.
Se pensar se torna um crime, então entramos no reino da polícia do pensamento e da discriminação contra aqueles que têm crenças religiosas, e isso deve preocupar todas as pessoas de boa vontade, independentemente de sua fé ou do lado do debate sobre o aborto em que se encontram
Smith-Connor pretende recorrer da decisão. Enquanto isso, ele chegou a um acordo judicial para pagar ao Bournemouth and Poole Town Council a multa de £9.000 em parcelas mensais de £250 [R$ 1.844,02 na cotação atual] pelos próximos três anos. De fato, depois que a sentença de culpa foi pronunciada, a disputa sobre os honorários advocatícios ocupou a maior parte da audiência de três horas. O King's Council, que representou o município, tentou, sem sucesso, repassar à Alliance Defending Freedom (ADF) os custos legais de £ 100.000 [R$ 737 mil], que agora o município terá de pagar, apesar de não ter dinheiro por causa de sua insolvência.
O investimento desproporcional para cobrar uma multa que inicialmente era de “apenas” 100 libras provocou a reação da ex-deputada britânica Miriam Cates. “Não estamos em 1984, estamos em 2024: ninguém deveria ser processado por meros pensamentos em sua cabeça”, disse Cates. “É um ultraje que o conselho municipal esteja investindo os fundos dos contribuintes para processar um crime de pensamento em um momento em que os recursos estão reduzidos ao mínimo.”
A repercussão dessa sentença chocante também chegou ao Parlamento Britânico. Sir Edward Leigh, o “Pai da Câmara dos Comuns”, ou seja, o membro mais antigo do Parlamento, expressou sua indignação com a decisão: “É vergonhoso que no Reino Unido, em 2024, alguém possa ser processado por orar silenciosamente”, disse Leigh.
“Infelizmente, temos visto repetidos casos de ameaça à liberdade de expressão no Reino Unido quando se trata de alguém a expressar suas crenças cristãs. Oferecer uma oração silenciosa no fundo do coração não pode ser considerado um delito. O governo precisa deixar claro com urgência que a liberdade de pensamento é protegida como um direito humano fundamental.”
Patricia Gooding-Williams possui bacharelado combinado em Literatura Inglesa e Economia pela Anglia Ruskin University, Cambridge, mestrado em Educação pela Universidade de Cambridge e lecionou Educação Internacional.
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