Presidente do Supremo cita o caso em que um fumante deu palestra com cigarro acesso alegando que a placa de proibido fumar estava fora do campo de visão; “a interpretação é sempre sujeita às múltiplas visões da vida”, afirmou o magistrado
Durante sessão na 4ª feira (23.out.2024) sobre a ADPF 7442 –que tratava sobre pedidos de recuperação judicial por cooperativas médicas que operam planos de saúde–, o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Roberto Barroso, citou, em tom cômico, um episódio antigo de descumprimento da legislação ao discorrer sobre a interpretação de leis pela Justiça brasileira.
O ministro relatou um caso que teria ocorrido durante uma aula do advogado Geraldo Ataliba (1936-1995), que foi reitor da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e professor de direito tributário. Ataliba dava uma palestra sobre a efetividade das normas jurídicas enquanto fumava em um auditório que tinha placas indicando ser proibido fumar no local.
Ao ser interpelado por um dos ouvintes pela incongruência da atitude (fumar no local proibido e estar falando sobre efetividade das normas), o professor teria respondido, segundo relato de Barroso: “A placa que diz proibido fumar está atrás de mim –portanto, evidentemente ela não se aplica a mim. Eu não consigo ler de costas. E a outra placa está ali no auditório –o que significa que só não pode fumar quem está no auditório–, de modo que eu não descumpri norma alguma“.
Ao concluir o relato, Barroso disse que o exemplo mostra como a interpretação jurídica “nunca é uma matéria singela”. A fala foi seguida de risadas do ministro Gilmar Mendes, decano da Corte.
O Supremo tem sido contestado em tempos recentes sobre a interpretação que dá para determinadas normas, leis e a própria Constituição. A declaração de Barroso no plenário do Supremo, ainda que de maneira amena, de que “a interpretação [das leis] é sempre sujeita às múltiplas visões da vida” tem sido veiculada nas redes sociais para criticar a forma como atua o STF.
Eis a íntegra da declaração do presidente do Supremo:
“A interpretação jurídica nunca é uma matéria puramente singela. Eu me lembro de um episódio ocorrido com o saudoso professor Geraldo Ataliba em que ele fazia uma palestra fumando um cigarro, em uma época em que se fumava diferentemente do que se fuma hoje.
“A palestra era sobre a efetividade das normas jurídicas. Ao final da palestra, em que ele fumou durante todo o tempo, um cidadão levantou na plateia e disse ‘professor, o senhor fala tanto em efetividade das normas jurídicas, mas o senhor ficou fumando o tempo inteiro e aqui há placas dizendo que é proibido fumar’.
“O Geraldo, que era um homem extremamente criativo, disse: ‘Meu amigo, o seu problema é a deficiência na interpretação das normas jurídicas. A placa que diz proibido fumar está atrás de mim –portanto, evidentemente ela não se aplica a mim. Eu não consigo ler de costas. E a outra placa está ali no auditório –o que significa que só não pode fumar quem está no auditório. De modo que eu não descumpri norma alguma’. De modo que a interpretação é sempre sujeita às múltiplas visões da vida”.
A lei 9.294 proibiu o fumo em locais fechados no Brasil em 1996. Ainda assim, há décadas recintos fechados, como auditórios, já ostentavam placas de “proibido fumar”.
OUTRAS INTERPRETAÇÕES
Essa não foi a 1ª vez em que o presidente do Supremo falou sobre as várias possibilidades da interpretação de uma norma ou sugeriu que violar a letra fria de uma determinação é às vezes necessário.
Em evento promovido pelo grupo Esfera em 12 de outubro, em Roma, na Itália, Barroso afirmou, lembrando da passagem de um autor lido na faculdade, que “é a violação que dá vida à norma”.
A declaração foi durante sua palestra no encontro, quando ele narrava uma história em que “roubou” docinhos no casamento de sua filha, Luna Barroso, em 2023, para a ministra aposentada Rosa Weber.
Segundo o magistrado, Weber estava indo embora da festa e disse que ainda não havia comido os doces da festa. Barroso, então, foi buscá-los para a então presidente da Corte, mas foi impedido por uma funcionária do casamento porque, segundo ela, “ainda não estava na hora” dos docinhos.
Barroso insistiu, dizendo que era o pai da noiva, ao que a atendente disse: “não muda nada”. A plateia riu.
“Essa moça recebeu essa instrução, estava interpretando ela. Ela provavelmente nunca leu [Hans] Kelsen [filósofo e representante da escola normativista do Direito], mas era uma positivista, normativista, e achava que a norma nunca pode ser flexibilizada. E eu me lembrei de uma passagem que li na faculdade do Del Vecchio, que diz que ‘é a violação que dá vida à norma’, de modo que meti a mão e catei os docinhos”.
Barroso conclui a história dizendo que a funcionária não estava errada, mas que “interpretar é sempre estar sujeito a algum grau de divergência”. Para ele, a interpretação não é uma “ciência matemática”, uma vez que existem diversas visões de mundo diferentes.
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